segunda-feira, 8 de março de 2010

HORA DO CONTO



UM LUGAR... PEDRA DOURADA...
Cristiane Carminate P.Grimalde Gadioli
Anoitecia. Seria uma daquelas infindáveis horas à beira da cama. Num deita e levanta mais mórbido do que qualquer feixe de luz na escuridão. Os pântanos sombrios iluminavam-se com as fagulhas breves dos vaga-lumes, mas ela não estava em paz. Algo dizia que aquela noite seria longa e traiçoeira, permeada de muita insônia e desatino causado pela ânsia de amanhecer.
Embora tudo a persuadisse do contrário, ela tentava disfarçar a solidão e o medo que sentia diante da tão nebulosa das almas. Fecham-se os olhos. O louco cruza a soleira de barbas desfeitas e boca voraz. Ele tentava buscar a saída, mesmo que suja, para sufocar seu desejo de consumir carne fresca. Ela estava sozinha num labirinto sem teto, vomitando a sombra do que um dia havia sido. Ela sentia saudades do vento, da cor e do brilho molhado do amanhecer. Sentia saudades dos pingos de chuva que caíam no rosto. Sentia saudades daquela lua, do asfalto iluminado.
Despertara da madorna. Todavia, só tinha a companhia da neblina traiçoeira, nebulosa e sorrateira que adentrava pelas janelas abertas. Não devia tê-las deixado escancaradas, pois assim tudo que a assustava se esgueirava para dentro dos aposentos desertos.
Chovia. Os trovões ecoavam na negrura da noite, carregada de lendas e mitos que povoavam as mentes dos habitantes daquela cidadezinha. Mais ainda, ela não dormia! Lembrara dos contos dos anciãos sobre as assombrações que lá viviam e que não tiveram paz depois de sua morte. Para piorar seu estado de espírito, a casa pobre era situada na curva do cemitério local. Podia ouvir os uivos dos cães desesperados, agoniados com os infortúnios infiéis, gritos incessantes dos gatos no cio e aquela típica claridade causada pelos relâmpagos.
Será que levantaria para fechar as janelas? Teria coragem para quebrar uma barreira de seu pavor? Seria estupendo trabalho de Hércules!
O vento batia nas frestas e solapava a madeira contra a parede tornando aquela noite mais longa do que já era. O rangido das dobradiças enferrujadas e o arrulho do bambuzal dos fundos a fizeram encolher embaixo da colcha de chenilhe carmim. Por fim, um sapo fugindo da chuva entrara nos seu quarto decidido a ficar.
Não havia ninguém que pudesse ajudá-la, a casa toda sombria, vazia e nefasta, mas ela tinha que fechar as escotilhas que a deixavam a deriva com o templo da dona lua.
Fechou finalmente! Podia agora dormir em paz, livre dos tormentos provocados pelos sons da noite.

Cochilou... Então surge de um nada ilusório, uma dama coberta por um manto simplório, trazendo temerosas chaves fatais. Estava vestida de negro e solidão, mas buscava delírios que já não são mais. Parada no sopé da colina, avistava os caminhoneiros bamboleantes, sonolentos e necessitados do descanso. Ela é jovem, filha do berço, seus traços confundem-se com o vinho. Os pobres motoristas vinham perdendo os sentidos no caminho. Ela os imobilizava com o olhar. Tão linda e tão serena, tal qual o hálito medonho da morte ela os sugava para dentro de seu corpo, desentranhava suas essências deixando-os despidos de sensatez. A lua enfeitiçava seus poros e aos poucos ia assumindo os foros de bruxa lânguida e traiçoeira.

O vento cortava-lhe os cabelos soltos e de pouco a pouco ia sumindo pela relva acima, numa nuvem de fumaça até desaparecer por completo da vista daqueles que já não mais estavam em paz.
Um barulho intenso a acordara do pesadelo. O som do tropel de um cavalo solitário ecoava na rua silenciosa. Ia cada vez mais se aproximando do parapeito da frágil janela de madeira.
A cadência das batidas estaladas no chão de pedra pararam finalmente na porta da casa. Só se ouvia agora o bufar inebriante do animal cansado e o hálito medonho adentrava pelo pequeno orifício que a separava do bem e do mal.
O relógio de gongo ressoava três horas da madrugada. Hora da zona morta! Hora em que todos aqueles que habitam mundos estranhos ficam livres e podem percorrer os caminhos entre as duas dimensões. Hora em que os sentimentos efêmeros desfraldam véus diáfanos e onde não se sabe o que é real ou o que é ilusão.
Cuidado! Pensava ela! O que seria isso? Quem é esse cavaleiro que invade a sua imensidão? Cavaleiro de armadura escura, passeando pelas trevas da noite impura e que portava uma espada nas mãos. Um calafrio percorreu a sua espinha. O vazio sentido antes aumentava e uma mescla de sensações provocava um rebuliço no âmago de seu ser. Uma ânsia de vômito subiu-lhe à boca, a saliva congelara e ela não mais respirava.
Da sua pele exalava um odor, o cheiro do medo que a presa solta quando está acuada pela besta fera. Não tinha saída. Ia sucumbir.
Numa fração de segundos um estrondo invadiu a casa. Os ventos e a chuva sopravam agonia para dentro daquele pesaroso lar. O cavaleiro adentrou ao recinto e o cavalo derrubara a porta. Os grossos pingos borboleteavam na tortuosa entrada molhando totalmente o chão e os batentes.
Ela finalmente o viu. Viu, mas não acreditou em sua própria visão. Sua razão fora danificada pelo pavor. Não podia acreditar no que estava diante de seus olhos. Abriu e fechou suas pálpebras, sua pupila dilatou e ela ficou totalmente petrificada: O cavaleiro não tinha rosto. A armadura descomunal erguia-se diante dela, os membros superiores agarrados ao cabresto do cavalo sôfrego, o chapéu negro não possuía cabeça para sustentar. Era a visão do inferno!
No mesmo instante, ele estendeu a mão coberta pela luva enegrecida como quem pede para ser tocado. E ela, num último ímpeto agarrou aquela mão sentindo uma energia que jamais havia sonhado em ter.
Do mesmo modo, o cavaleiro correspondeu ao ardor do sentimento e num lampejo virou-se para o horizonte, deixando apenas lágrimas acopladas a mais solidão. Ferozmente o cavalo cruzou a soleira da porta arrombada pela fúria do cavaleiro e perdeu-se no horizonte escuro.
Sem entender o que sentira, ela partiu atrás do homem de negro, molhando-se na chuva e nas águas do choro pesado que a envolvia. Uma mescla de sentimentos a arrebatavam. Uma dor antiga e profunda dilacerava seu coração, pois algo em espécie de deja vu havia acontecido.
O medo se foi. Porém a sua saída deu lugar ao vazio e a saudade que ela não entendia.
Dali em diante ela não mais sofreu nas noites escuras, nem mais temeu a hora da zona morta. Não havia mais insônia porque ela dormia em paz. Essa paz só era devassada, quando no cair da madrugada sombria, um vulto negro a cavalo cavalgava pelas ruas da cidade e, com seu tropel ao luar enfeitiçava aquela mulher que só desejava ir para não mais voltar.

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